MARS TV Gabriel Bozano MODO DE GRAVAÇÃO PESSOAL REC... Quem diria que eu realmente estaria aqui, a mais de 227 milhões de quilômetros da Terra, vislumbrando da janela do meu alojamento o maior vulcão de Marte, Olympus Mons, com seus 29 mil metros de altura. E mais, com duas deslumbrantes Equinianas nuas, se divertindo na minha Jacuzzi. Estou exausto demais para fazer qualquer coisa que não seja sentar em frente da janela com um copo de whisky e esse gravador de pensamentos na cabeça. Daqui a pouco eu volto pra banheira, para me inebriar com suas crinas avermelhadas, sua pele camurça aveludada, seus lábios... Foco. Tenho que voltar o foco para outros pensamentos ou minha biografia vai parecer um filme pornográfico. Preciso de um rascunho mental coerente para que meu ghost writer possa ter algum material para se basear quando estiver escrevendo minha biografia. Vamos ver, por qual lembrança eu deveria iniciar este arquivo de memória? Ah, claro, a estréia da MARS TV. Acho que nada mudou tanto o planeta quanto a estréia da MARS TV. O mundo parou, as guerras cessaram, as ruas ficaram transitáveis, ninguém saiu de casa. Um feriado mundial. É engraçado como eu imaginava que seriam seres alienígenas. A primeira coisa que me vinha à mente eram homenzinhos cinzas apavorantes ou os humanóides com próteses faciais das famosas séries de TV. Até que nossa criatividade e imaginação foram bem acuradas, mas nunca imaginamos algo parecido com MARS TV. Os projetos que procuravam por vida inteligente nunca achavam nada. O projeto SETI, por exemplo, ficou mais de sessenta anos procurando em vão por transmissões de rádio do espaço, até que finalmente alguns avanços nas telecomunicações mudaram drasticamente o conceito da busca. Em 2023 foi feita a primeira transmissão prática de um pacote de dados por um método chamado de tubulamento quântico. As ondas de comunicação eram atiradas ao espaço através de uma espécie de túnel que as deixava algumas vezes mais rápidas que a velocidade da luz. Espetaculares 109 vezes mais rápidas. Era possível transmitir um feixe de dados a uma distância de 10 bilhões de anos luz em apenas alguns segundos. Na época, eu já trabalhava na Moon Imersion, uma empresa que tinha dois robôs na lua e, através da Internet, qualquer pessoa podia passear pelo solo lunar e vislumbrar o espaço pelos olhos do robô. O tempo da transmissão de dados era bem razoável dado a proximidade com a Lua, mas com a descoberta dessas transmissões tubulares, eu tive uma idéia muito mais excitante. Três anos depois, e 25 milhões de dólares bem investidos, coloquei no ar meu próprio negócio, Mars Imersion, 6 robôs voadores, além de dois robustos robôs de resgate, posicionados em uma base montada na periferia do complexo central Marciano, bem próxima ao Valles Marineris, com seus desfiladeiros de 6 quilômetros de profundidade. Por 5 dólares o minuto qualquer pessoa do planeta poderia pilotar um dos robôs voadores através da atmosfera rarefeita do planeta vermelho. Foi um sucesso por meses. Estava quase terminando de pagar os investidores e sonhando com os lucros quando Rick Stratton apareceu. Um dos principais especialistas do SETI era Howard Stratton, um cara simpático, bem diferente do filho. A idéia dele foi simples: esquecer as transmissões de rádio e tentar encontrar transmissões tubulares espalhadas pelo espaço. Em poucos meses, ele e sua equipe desenvolveram um dispositivo prático de detecção de linhas de transmissão tubulares independentes e instalou o aparelho em Marte, para fugir das eventuais interferências que a atmosfera da Terra, já abarrotada de transmissões, poderia causar. Foi então que, na data histórica de 12 de Janeiro de 2048, o dispositivo foi ligado. Foi puro êxtase. O aparelho de Howard não só detectou milhões de linhas de transmissão espalhadas pela galáxia, como encontrou um enorme feixe atravessando Marte e se redistribuindo em milhões de linhas infinitas, não se sabe para onde. Howard tinha descoberto a TV a Cabo intergaláctica. Como que eu faço para colocar esse negócio em pause? Quero mais uma dose de Whisky. Satra, me traz a garrafa de Whisky... Satra?, Nadália? Onde vocês se meteram? Ah, oi, obrigado, pode colocar aqui no meu copo. Não agora não, tenho que terminar esse rascunho mental. O quê? Humm... Isso é muito bom... Calma que eu estou gravando essa droga, vocês sabem como que pausa esse negócio?... Se alguma das duas me disser como eu pauso esse gravador mental, eu volto pra banheira... PAUSE REC... Bem, onde é que eu estava? Certo. Não demorou muito para que o dispositivo de Howard, batizado de Mars Receptor, começasse a decodificar dezenas de imagens que eram transmitidas pelo grande feixe que passava por Marte. É óbvio que o governo foi o primeiro a ter acesso à TV alienígena, que tinha de tudo: registros históricos e lingüísticos, esportes, programas científicos, pornográficos. Mas aos poucos mais e mais imagens começaram a ser liberadas para o público. Foi como ficamos conhecendo os responsáveis pelas transmissões. Foram denominados de Tillianos e eram residentes na outra ponta da Galáxia, milhões de anos luz de distância. Para a surpresa de poucos, eram humanóides pequenos de pele cinza e olhos grandes e negros, provavelmente devido a milhares de anos de evolução em frente à TV. Os Tillianos transmitiam bilhões de diferentes canais, de diferentes sistemas planetários. Aos poucos, o governo foi permitindo mais e mais acesso a certas imagens e programas de entretenimento, esportes e, finalmente, BUM! Através de uma emenda constitucional, os senadores permitiram a transmissão de certos programas diretamente para os lares de bilhões de telespectadores. É aí que entra Rick Stratton e a minha falência teve início. Com o Mars Receptor patenteada pelo pai e servindo de decodificador central, Rick Stratton conseguiu exclusividade na transmissão dos programas alienígenas e em 12 de Janeiro de 2050 estreou MARS TV. 1075 canais de entretenimento mostrando desde Equinianas fazendo sexo com os tentáculos de um Fargal, os documentários das batalhas que destruíram a galáxia de Andrômeda e, é claro, o maior evento esportivo do Universo. Universal Battles Games. É de se esperar que ninguém mais tivesse interesse em se conectar no meu site para pilotar um robô voador através dos desfiladeiros de Marte, podendo assistir a um gigantesco alienígena reptiliano sendo surrado até a morte por um Dan-Teluriano nanico, cabeçudo e cheio de telecinese. Estava falido. Mas apesar de tudo mantive o site no ar, mesmo com a pressão dos investidores e com os robôs parados. Eu boicotei pessoalmente MARS TV. Preferia ficar viajando pelos desfiladeiros e planícies marcianas conectado ao meu robô de manutenção e resgate, que apelidei de Rock Marciano. A grande diferença entre Rock Marciano e os meus outros robôs era o tamanho, precisava ser robusto o suficiente para resgatar e carregar qualquer um dos outros de volta para a base se algo acontecesse, tinha que ter a mobilidade de um voador e a aspereza de um robô terrestre. Era uma obra prima da construção civil Japonesa. Com ele escalei Olympus Mons e atravessei os 500 quilômetros de um lado ao outro do Valles Marineris. Andava pelas planícies de Chryse à frente de uma trilha de pó vermelho, para visitar o local do pouso histórico da Viking 1, vendo o horizonte ao longe com seu brilho alaranjado. E o pôr do Sol? Que beleza. O pôr do sol em Marte parecia banhado em ouro. Foi então que certo dia minha sorte mudou. Recebi uma ligação de nada mais nada menos que o próprio Rick Stratton. Não o conhecia pessoalmente e o odiava, mas mesmo assim resolvi atender o telefone. Rick estava desesperado. MARS TV estava há seis meses no ar, era o maior sucesso da história, tinha bilhões de dólares em investimentos e, logicamente, dívidas e, de repente, de uma hora para outra, poderia desaparecer. Rick havia recebido uma comunicação diretamente da Central Tilliana informando que as atividades de retransmissão de MARS TV eram ilegais e que se Mars receptor não fosse desligado em 24 horas, os Tillianos enviariam um feixe de sobrecarga capaz de fazer um buraco em Marte maior que os vulcões de Tharsis. Não que eu não tenha sido ingênuo, mas quem não acreditaria? Talvez seja melhor eu mudar o modo de gravação para que a história fique mais vívida, onde pode ser? Ah, deve ser esse botão aqui escrito “mudar modo de gravação”. Vamos ver... ALTERANDO MODO DE GRAVAÇÃO MODO DE GRAVAÇÃO IMPESSOAL ATIVADO. O Rosto de Rick Stratton suava loucamente enquanto esperava pela decisão de Dagger. Os pixels do suor brilhavam na tela de cristal líquido. — Não sei não, Stratton. Roubar o Mars Receptor? — Só você pode me ajudar, Dagger. Meus robôs de manutenção não tem capacidade de voar para carregar o Mars Receptor para debaixo da superfície, mas os teus robôs... Dagger não gostou nem um pouco da idéia. “Já estou falido só falta ser preso”, pensou. — Que prova vou ter de que você vai me pagar os 15 milhões que eu devo aos investidores? — Olha na tua conta. Dagger popou uma janela no monitor a acessou sua conta. Depósito de 15 milhões efetuados. — Vamos logo com isso, Dagger. Eu te pago mais quinze milhões se você quiser; se Mars Receptor for destruído eu perco bilhões. Você me empresta um robô voador, me ajuda a chegar até o complexo Central, a gente pega o Mars Receptor e o escondemos em algum lugar seguro. Dagger se remexia na poltrona. — Tudo bem, vou te dar acesso ao Robô de resgate 2. Ele tem mais potência e é mais resistente que os voadores comuns. A gente sai da minha base no perímetro delta e chegamos ao centro do complexo em menos de cinco minutos. Eu conheço algumas cavernas no desfiladeiro próximo, nunca fui muito fundo, mas sempre se tem uma primeira vez. Você tem certeza que se colocarmos o Mars Receptor longe da superfície o feixe de sobrecarga vai se dissipar? — Acho que sim, pelo menos vou ter tempo de bolar outro plano. Falta uma hora pro deadline dos Tillianos, vamos logo com isso. Dagger começou a digitar freneticamente enquanto liberava os códigos de acesso do robô de resgate 2 para Stratton. Por fim se preparou. Bebeu um último gole de Corona, colocou as luvas e os óculos e recebeu o leve choque do sistema de imersão. Em poucos segundos estava conectado a Rock Marciano. A área onde ficavam guardados os robôs era simples. Uma base circular com um domo de estrutura metálica furada no meio. Dagger viu o Robô de resgate 2, ou melhor, Stratton, um tanto cambaleante, mas logo já tinha se posto no ar. A comunicação entre os dois foi estabelecida. — Vai com Calma Stratton, ainda temos tempo. Vê se não vai detonar meu robô, me segue que eu conheço esse planeta como a palma da minha mão. Os dois enormes robôs decolaram. O grande complexo parecia um pequeno ponto branco no solo vermelho próximo ao precipício do desfiladeiro de Valles Marineris. Os robôs voaram rapidamente e chegaram ao complexo em menos de cinco minutos. Ao pousarem, entraram correndo em busca do Mars Receptor. — Por que eu fui me meter nessa? Stratton, se alguém vir a gente... Stratton soltou um grito paranóico. — Eu espero que vejam. Eu avisei pra droga do governo que ia tomar uma providência. — Como é que é? Mas e o feixe... — Dagger foi interrompido de novo. — Não tem feixe nenhum seu idiota, o Mars receptor nunca esteve em perigo de ser destruído, minha conta bancária é que sim. Os olhos de Dagger/Rock Marciano brilhavam como fogo. — Calma aí Dagger deixa eu te explicar. Os Tillianos realmente enviaram uma transmissão, mas não para mim, foi pro governo. Reclamaram que MARS TV era clandestina, que eles queriam indicar nosso planeta para fazer parte de uma merda de federação caso mostrássemos nossa boa fé. Como? Assinando um contrato com eles. Lógico que a porra do governo assinou, e rescindiu o meu. Eu tenho 20 bilhões em dívidas e a rescisão do contrato não vale nada. Mas o Mars Receptor vale muito, é ele que decodifica as transmissões Tillianas e possibilita a recepção dos canais pelo aparelho de TV comum. Sem ele ninguém vai ver MARS TV por um bom tempo. — Então esse é o seu plano, roubar o Mars Receptor pra chantagear o governo? — Parece que sim. Stratton arrancou o Mars receptor do console. Era um dispositivo do tamanho de uma mochila. MARS TV estava fora do ar. Dagger cerrou o punho. (Rock Marciano também) — Não posso deixar você fazer isso, Stratton. Não posso deixar você sacanear com o governo, os Tillianos e ainda por cima milhares de telespectadores na Terra. Devolva-me o Mars Receptor agora. — esbravejou furioso. — Acho que não, Dagger. Até mais ver. — E decolou. Dagger decolou atrás. Stratton era um bom piloto, já tinha utilizado o serviço do Mars imersion algumas vezes e conseguiu uma leve dianteira. Dagger se atrasou um pouco ao tentar em vão cortar a conexão de Stratton com o Robô, mas sem que soubesse Stratton estava usando um retransmissor próprio. Dagger tinha que alcançá-lo na marra. Os dois voavam baixo, junto ao solo marciano, em direção ao enorme abismo do Valles Marineris. Uma queda vertiginosa e os robôs seguiam para as profundezas do desfiladeiro. Stratton tentava se distanciar o máximo possível, deu dois rodopios e entrou desgovernado pela abertura de uma caverna na parede do desfiladeiro. Dagger o seguia de perto. Algumas cavernas marcianas pareciam intermináveis labirintos, Stratton e Dagger se desviavam o máximo que podiam de estalactites ancestrais. Stratton quase perdeu o braço se chocando contra a parede de um túnel que espiralava para a esquerda. Dagger passou incólume. Com os braços extendidos, estava quase alcançando as pernas de Stratton quando este manobrou para a esquerda. Saíram de dentro de um pequeno corredor para o interior de uma gigantesca galeria, esculpida centenas de quilômetros abaixo da superfície de Marte, descomunal como só Marte sabia ser. Mas tinha alguma coisa muito diferente com aquela caverna. Flutuando no meio do nada, penetrando fundo nas profundezas do planeta e alcançando uma altura extraordinária, existia uma estrutura incompreensível de luz e metal, brilhos polidos e luzes néon, esferas rodopiantes e homenzinhos cinza trafegando por dentro de corredores cromados. Os robôs pararam, flutuando lado a lado, minúsculos perante aquele colosso brilhante que parecia pulsar de forma espiralada emitindo ondas de fumaças luminosas multicoloridas. Mais tarde ficaram sabendo que o que tinham descoberto era uma central de retransmissão Tilliana construída em Marte há mais de dez mil anos. Existiam apenas 5 dessas maravilhas tecnológicas espalhadas pela galáxia, cobrindo com transmissões de TV os cinco diferentes quadrantes. Isso explicava o enorme feixe que atravessava Marte e se redistribuía em bilhões de transmissões menores, detectado por Howard do dia que ligou Mars Receptor pela primeira vez. Dagger e Stratton ficaram paralisados de êxtase vislumbrando aquele carrossel alienígena. Mas aquele momento não poderia durar para sempre. Enquanto permaneciam parados, um pequeno disco voador cromado se dirigiu até eles. Um orifício no alto do disco se abriu e um Tilliano cinza com olhos negros esbugalhados saiu de dentro da nave falando de forma leve e clara. — Sr. Stratton, por favor, nos devolva o Mars Receptor, o senhor já foi destituído da presidência de sua empresa pelos acionistas, não há necessidade de ações violentas ou desesperadas. Stratton balançou a cabeça saindo do transe. Agarrou bem o Mars Receptor e parecia uma criança mimada quando gritou. — Não devolvo. Dagger só precisou de um golpe bem dado para trucidar o robô de Stratton, mas estava tão furioso que acabou dando três. O primeiro foi um soco que arrancou a cabeça do robô, Stratton perdeu o controle deixando cair o mars receptor de suas mãos. O segundo foi um chute em rodopio que dobrou seu tronco em 90 graus, terminando com um outro chute na altura do tórax que jogou o robô de encontro à parede, espatifando-o. As aulas de Kung-Fu valeram a pena. Dagger ainda teve tempo de cair vertiginosamente e resgatar com sucesso o Mars Receptor, que foi entregue nas mãos das autoridades Tillianas. Em pouco tempo chegaram na superfície. No momento que o Gerente Tilliano reconectou o Mars Receptor, restabelecendo as transmissões da Mars TV, lá estava Dagger, ou melhor, Rock Marciano, sendo cumprimentado pela equipe Tilliana em seus trajes espaciais. Foi tudo filmado pelo canal 897, mas pouca gente viu, a maioria estava desesperada demais tentando sintonizar de volta o canal pornográfico Equiniano. Talvez seja por isso que poucos escutaram quando o gerente Tilliano deu um tapinha nas pernas de Rock Marciano e perguntou. — Bela luta, belos golpes, você já pensou em participar do Universal Battles Games? MODO DE GRAVAÇÂO IMPESSOAL DESATIVADO REATIVANDO MODO DE GRAVAÇÃO PESSOAL 123 testando, voltei? Acho que sim. Cara, que loucura esse modo de gravação impessoal. Parece que estão sugando as memórias do seu cérebro. Esse dispositivo de gravação de pensamentos só podia ser coisa daqueles Dan-Telurianos, cabeçudos malucos. Enfim, acho que esse rascunho contando o início da minha história já está bom demais para mandar para meu Ghost Writer. Ele que assista os noticiários antigos e escreva sobre o resto, a prisão de Stratton, minha fama meteórica como salvador da MARS TV, a mudança pra Marte e o mais importante, é claro: minha brilhante carreira de lutador. Eu sei que no cinturão de campeão Universal está escrito: Rock Marciano, Campeão Universal dos pesos pesados — Universal Battle Games. Mas todo mundo sabe quem é que estava pilotando aqueles punhos de titânio quando Rock trucidou aquele gigante de Lava nos Vulcões Vendílicas. Isso mesmo: eu, Johh Dagger, diretamente de Marte, o planeta vermelho. Sim queridas, que foi? Já, já terminei, estou indo. Essas Equinianas são insaciáveis. ARQUIVO SALVO. GRAVAÇÃO ENCERRADA.